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Lelo nas Olimpíadas de Inverno |
Relato de Lelo Apovian
Antes de escrever sobre minha amadora carreira de corredor e triatleta tenho que contar minha história como esquiador. Comecei a esquiar aos 9 anos com minha família. Fomos para a Itália. Gostamos bastante e virou programa familiar. Todos os anos voávamos para alguma estação nevada. Numa destas vezes participei do Campeonato Brasileiro de Ski. Fiquei em terceiro na categoria amador, mas o mais importante foi que gostei da sensação. Através de um homem pioneiro nos esportes de montanha no Brasil, Domingos Giobbi, me tornei um esquiador profissional num país sem neve. Fui um dos “abre alas” para o esporte no Brasil. Resumindo, fui três vezes campeão brasileiro de ski, vice-campeão brasileiro de snowboard, além de ter participado de quatro Mundiais e duas Olimpíadas de Inverno.

Cada vez mais a corrida de rua fazia parte da minha vida. Quando as provas ainda eram poucas e quase não havia corredores, fiz algumas de 6 km para 21 minutos. Estava melhorando.
Em 1996, durante um treinamento nas montanhas de Courchevel (França), para o Mundial da Espanha, tive mais um acidente. Foi a primeira vez que tive a noção do que é um nocaute. Meu esqui soltou do pé e bateu no meu nariz. Fiquei uns 10 minutos no chão tentando me levantar, mas toda vez que ficava de pé, caía, tonto. Fui para o hospital e ganhei um nariz quebrado e um “day off”. Meu treinador suíço era bravo e não dava moleza.

Eram 11h da manhã, tínhamos uma corrida programada em uma pista não muito difícil. Eu não estava participando, só curtindo a boa neve que os atletas iriam ter. Quando, sem saber, saltei um grande buraco que o acúmulo de neve deixou. Não fazia parte da pista, o trator que retirou o excesso de neve durante a noite não limpou esta área. Estava perigoso. Eu sabia onde era e pensei que deveria tomar cuidado extra.
Subi a montanha mais uma vez, a neve estava espetacular. Comecei minha descida, estava em outro universo, o vento, a liberdade, o sol, estava livre. É esta a sensação de quem esquia, liberdade. Que dia incrível! Mas a montanha, como o mar, também prepara armadilhas. Estava tão focado no que estava fazendo que errei ao calcular que o buraco perigoso que tinha saltado pouco tempo antes não era no final da descida. Quando percebi estava voando, mas desta vez, tomei um grande susto e caí. Primeiro ouvi um barulho enorme, parecia uma árvore caindo, depois tive medo de quebrar o pescoço, rolei, girei, não parava de cair, tive medo, muito medo. Ao parar quis levantar rápido para ver se tudo estava no lugar, principalmente a nuca que tinha batido várias vezes na neve dura. Olhei meu bastão e estava quebrado como nunca tinha visto. Menos mal. A “brincadeira” tinha saído barato. Mas de alguma forma eu não conseguia ficar de pé. Quando olhei para minhas pernas, vi que o pé esquerdo estava virado 180o, para trás, sem nenhuma ligação com o corpo. Para piorar o pensamento negativo que estava tendo, lembrei do Las Grael quando sofreu o acidente que o fez amputar a perna. Eu lembrava que em uma de suas declarações ele disse não ter sentido dor. Eu também não tinha nenhuma dor.

Do momento em que o paramédico do resgate colocou a mão na minha perna e senti e ouvi os ossos baterem entre si, até 30 dias depois do acidente, não posso descrever o que passei, a dor, o sofrimento, a falta de liberdade, de paz e o mal estar. Tive o que os médicos chamam de esmagamento ósseo na Tíbia e fratura dupla na Fíbola. Fiz minha primeira cirurgia no dia 15 de setembro para colocar uma haste intramedular. Seriam seis meses de uma lenta recuperação, um mês sem levantar, três meses de muleta e mais dois meses com andador e bengala.
Lembro quando o médico da família me visitou no hospital. Perguntei quando poderia voltar a esquiar e a resposta foi dura e seca. Eu deveria torcer para voltar a andar normalmente. O médico que me operou disse que se a fratura tivesse ocorrido no início dos anos 1940, devido à falta de tecnologia, a amputação seria o mais indicado.
Com o tempo fui percebendo que o tamanho da fratura complicava meu tratamento. Tinha perdido do joelho para baixo 3 cm de perna, além de outros 3 cm por uma deformidade lateral, pelo tipo de fratura. Estava com 6 cm de diferença entre as pernas. De um lado tinha 1m76cm de altura, do outro 1m70cm.
Sou uma pessoa muito disciplinada, quando é para buscar a perfeição dou o meu melhor. E foi isto que fiz, me dediquei, tentei ficar bom rápido, para poder voltar a ser independente, não precisar de ajuda para ir ao banheiro. Não me esqueço a primeira vez, após 30 dias, quando fiz xixi de pé. Incrível. É um detalhe que não damos importância em nosso dia a dia, mas foi muito bom. Uma grande vitória.
Tudo estava indo bem, mas o tempo foi passando e a perna não ficava boa. O médico falava para eu “estimular” o osso com ginástica e caminhada. Comecei a pedalar, ia para a Cidade Universitária de gesso e de bike. Fazia fisioterapia e estimulava a consolidação do osso. Em seis meses eu deveria ter tido alta. Já tinha passado um ano e o osso não colava. Estava manco, não conseguia correr para atravessar a rua, tinha dor, muita dor. Um ano e seis meses depois do acidente o osso não colou e o médico disse que eu deveria me acostumar, que provavelmente seria assim para sempre. Dois anos depois e eu ainda sem caminhar direito. Precisava de bengala e pior, estava manco. Lembro que ia aos mesmos lugares que frequentava antes da fratura e as pessoas me viam “torto”. Eu podia ler nos olhos de cada uma delas a descrença em minha recuperação. Foi quando durante um almoço com meu amigo Marcos Paulo Reis ele sugeriu que eu fosse ao seu médico pessoal. Fui, já não sabia mais o que fazer, não podia ficar daquela maneira, eu era muito ativo para não poder mais fazer esporte ou até mesmo caminhar direito.
O dr. Marcelo Filardi diagnosticou que tinha havido um erro médico, por isso minha perna estava 6 cm mais curta. Além disso, uma deformidade lateral bastante grande, uma falha óssea que poderia gerar uma nova fratura e o mais grave, eu tinha o que a medicina chama de pseudo-artrose, a não consolidação do osso. O médico em quem confiei durante dois anos havia me deixado aleijado.
Fiquei louco, não pelo erro, afinal o homem erra, mas sim pela falta de ética e por um ego inflado que é comum em médicos “famosos”, que se julgam Deus. Ele tinha me “enrolado” por muito mais tempo que o previsto. Fiz uma peregrinação médica até constatar que o Dr. Filardi estava certo, eu teria que fazer mais uma cirurgia e começar tudo novamente.
Entrei na internet, estudei, aprendi o que era pseudo-artorse. Finalmente estava pronto para mais uma luta, uma nova cirurgia. O tratamento indicado era a “gaiola”, ou melhor, o Ilizarof, uma invenção de um médico russo que operava anões e fazia com que eles crescessem até 40 cm. Era um método revolucionário para quem tem ou sofre de deformidade nos ossos. Eu iria me curar. Teria também que fazer encherto de osso, tirar da bacia para colocar na perna. O objetivo de usar esta armadura era também alongar os 6 cm perdidos e corrigir todas as deformidades deixadas pelo tamanho da fratura e pelo erro, que gosto de repetir, foi por falha médica, falta de humildade e por um ego que vale mais que um jovem manco.
Estávamos no final do ano, eu queria ficar bom rápido. Sempre em minha vida tive pressa, sei perder, mas não gosto. E desta vez não era diferente, queria ficar bom rápido, não admitia a derrota. Como não tinha alternativa, quis fazer a cirurgia o mais rápido possível, há alguns dias antes do natal. Não operei com o dr. Filardi, mas sim com um amigo dele, um mestre em “gaiolas”, que fez um ótimo trabalho. Passei o ano novo com minha namorada em São Paulo. Feliz, pois desta vez estava certo que ficaria curado.
Os dias foram passando. Pela primeira vez na vida comecei a reclamar da vida, da injustiça que Deus estava fazendo comigo, afinal eram mais de dois anos de tratamento e eu teria que ficar mais 6 meses. Eu sempre fui muito ativo e não entendia o porquê de estar sofrendo aquela penitência. Pior que a dor física (enorme), naquele momento era a dor emocional. Doze dias depois da cirurgia, na casa da minha mãe, comecei a passar mal. Febre, dor no corpo, uma sensação estranha. Liguei para meu pai e fomos correndo (de carro) para o hospital onde o ortopedista estava. Do início da febre até o médico me atender passaram-se sete horas, o tempo suficiente para que meu corpo fosse comido por uma grande infecção hospitalar. Tive 41o de febre, quase entrei em convulsão e dois dias depois fui operado novamente para retirar dois pinos que eram o foco do problema. Era a quarta cirurgia e desta fez fiquei acordado e pude analisar o que é uma cirurgia ortopédica. Não queiram saber. A partir deste dia nunca mais reclamei de nada. Quando algo não está dando certo ou não funciona, penso sempre que pode ser pior. No meu caso estava claro que sempre poderia piorar, e muito.
E o pior ainda estava por vir. O tratamento para alongar o osso é literalmente uma grande tortura. Iria crescer e recuperar os 6 cm perdidos em pouco menos de 30 dias. Foi a partir desta data que permaneci um mês sem dormir. Tentei de tudo, mas eu não dormia mais que duas horas consecutivas. Ficava muito agitado e a única coisa que me acalmava era massagem no pé da perna quebrada. E foi assim que minha mãe e minha namorada na época, ficaram durante 30 dias. Elas dormiam no pé da minha cama, sentadas no chão, fazendo massagem no meu pé.
Mais uma etapa do meu tratamento estava cumprida, as deformidades da perna faziam parte do passado. O próximo passo era esperar a consolidação do osso que deveria ser em 4 ou 5 meses. Mas como descrevi anteriormente, quando tudo está ruim, ainda pode piorar mais. Em provas longas como esta, deve-se estar preparado para o pior, tudo pode acontecer.

Não sabia o que fazer, meu médico tinha indicado uma nova cirurgia para fazer um novo enxerto de osso. Ninguém sabia o que fazer, éramos 4 cabeças pensando: eu, meu pai, meu ortopedista e o médico da família. Ninguém sabia como agir. Tínhamos uma opinião unânime, ir aos Estados Unidos ouvir outros especialistas. Por sorte, o ortopedista tinha um congresso em San Diego e foi para lá que embarcamos. No último dia do evento, foi colocado meu caso para que todos os médicos de vários países pudessem ver e opinar. Tínhamos digitalizado todo o material com mais de três anos de tratamento em um CD. Me chamaram no palco e todos os médicos presentes me avaliaram. A medicina ortopédica é muito desenvolvida em países que sofreram ou sofrem com a guerra, por isso estar com médicos da Rússia, Alemanha, Japão e Estados Unidos era fundamental para termos uma ideia de que forma agir. Mas depois de mais de uma hora com os melhores ortopedistas do mundo não chegamos a nenhuma conclusão, cada um indicou um tratamento diferente. O americano achava melhor refazer tudo e começar novamente, o russo e o japonês julgaram o enxerto a melhor forma, e assim saímos da Califórnia, muito mais confusos do que quando chegamos.
Na volta fomos almoçar com o médico da família que ficou no Brasil e estava preocupado com as notícias. Explicamos o que ocorreu no Congresso e foi quase na sobremesa que ele começou a falar. Sua ideia para resolver o problema era a mais inusitada de todas e posso garantir a mais louca também. O dr. Antranik queria usar um remédio (não lembro o nome) indicado a pacientes com câncer nos ossos. Sua função é estimular o crescimento das células que não foram atingidas pela doença. O tratamento deveria ser feito no setor de oncologia do hospital, a cada 15 dias dias. Obviamente eu achei tudo aquilo uma grande loucura, tinha estado com os melhores ortopedistas do mundo e ninguém tinha falado nesta solução. Como acreditar num pediatra? Mesmo que seja um mestre. Nunca mais vou esquecer a frase dele: “Nunca niguém utilizou este tratamento, mas vai funcionar, eu garanto que não é um experimento, eu preciso de 3 meses, me dê 3 meses”.
Seguindo o meu perfil de não ser uma pessoa paciente e querer resolver as coisas rápido, fiz uma conta simples. Se seguisse com o ortopedista, seriam no mínimo mais 6 meses, e com o pediatra no máximo 3 meses, com a vantagem de não ter que fazer uma intervenção. Mas a verdade é que em nenhum dos dois casos o sucesso era garantido. Talvez eu tivesse que ficar com a perna “ruim” para o resto da vida.
Eu posso garantir que durante todo o tratamento tive certeza que ficaria bom. Posso contar em poucos números as vezes que me questionei se iria voltar a correr e a fazer todas as coisas de que gosto. Graças à fé, à força que Ele nos dá, durante todo o tempo eu tinha certeza que ficaria bem. Minha cabeça foi uma grande aliada.
Claro que segui o tratamento do dr. Antranik, fiz as aplicações do remédio para pacientes com câncer. Vale lembrar que eu nunca tive câncer. Meu problema era pseudo-artrose. Mas seria a escolha certa? Devia confiar no pediatra? Em junho de 2003 dei entrada no hospital para finalmente retirar a “gaiola”, meu tratamento tinha chegado ao fim. Foi um dia especial. Uma emoção para toda a família. Cheguei em casa andando sem nada na perna. Estava curado e sem nenhuma deformidade.
No mesmo ano, em setembro, fui com minha namorada esquiar novamente. Fazia 4 anos que não via a neve e não sentia a sensação de liberdade, o vento na cara, o frio na barriga e nas pontas dos dedos congelados. Quase não dormi de ansiedade. Será que ia doer? E sentia medo de não ter mais prazer. Tudo passou pela minha cabeça. Acordei cedo, estava um lindo dia, tomamos café e fomos encontrar a minha grande e saudosa amiga, a montanha. Eu posso jurar que quando começei a descer estava inseguro, sem noção das minhas reações, mas foi após duas ou três curvas que tudo voltou ao normal. Lembrei de todos os movimentos, sem medo e a esquiada foi perfeita. Inacreditável como a cabeça memoriza as coisas boas e apaga as ruins. Esquiei uma semana inteira, sem dor e com todas as boas sensações novamente.
Foram três anos e nove meses de tratamento, cinco cirurgias, mais de 30 pinos e muita dor. No mesmo ano de 2003 fiz meu primeiro ½ Ironman em Pirassununga, no interior de São Paulo, em 4h56m. Quase morri!
Em 2004 fiz minha primeira maratona em Berlim, com 2h46m. Em 2005 corri minha primeira prova de 10 km para 35 minutos. Ganhei algumas provas de Duathlon. Todo ano vou esquiar pelo menos durante uma semana.

Tenho que agradecer ao meu pai, que sempre esteve muito próximo e também por ter tido condições financeiras de pagar um tratamento tão longo e com tantas variáveis. Minha mãe, pelas massagens. Minha namorada, pela paciência. A todos os médicos, que foram éticos e me curaram e a Deus por ter me ajudado com os bons pensamentos ao longo de todo o tratamento.
A vida é uma só e não vou deixar de fazer as coisas que amo. Aproveite você também.
Que exemplo!!!Muitas vezes temos que lidar com lesões, para por 1 mês e já nos desesperamos. Obrigada pelo seu relato!
ResponderExcluirAmo correr, mas faz dois meses que estou parada por causa de uma fratura por estresse na fíbula. Após ler esse relato, confesso que vou encarar a minha recuperação de uma outra forma. Isso que é exemplo de superação, determinação e força de vontade.
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